Resistências e Pedagogias Corporificadas

No dia 30/8, o Cineclube Pedagogias da Imagem retornou do recesso com a exibição do filme “Ôrí” (Brasil, 1989), de Raquel Gerber, no Auditório Manoel Maurício/CFCH. Após a exibição, tivemos a palestra Pensar as vozes do currículo: gênero, raça e território, ministrada por Nastassja Pugliese, doutora em Filosofia pela University of Georgia (EUA), professora da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenadora da Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura, sediada na UFRJ, em conjunto com Diego Matos Gondim, doutor em Filosofia pela Université Paris VIII (França) e professor do Departamento de Ciências Exatas, Biológicas e da Terra (PEB/UFF) e do PPGE/UFRJ.

O documentário, dirigido pela socióloga Raquel Gerber, usa da narrativa e voz de Beatriz Nascimento, historiadora e figura incontornável da militância do movimento negro no Brasil. O filme navega e examina de forma profunda os eventos e a história da resistência negra no país, principalmente contra as raízes coloniais, acompanhando a organização do movimento negro entre os anos 1977 e 1988, também mostrando suas origens e manifestações religiosas africanas, tendo como base a história da Beatriz Nascimento. A sessão foi realizada em parceria com a Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura.

A partir de uma iniciativa de resgate de obras de autoras brasileiras e vozes de minorias, Nastassja comentou sobre a importância de se promover uma nova composição do currículo, destacando como os aspectos de gênero, raça e território se entrelaçam com a educação contemporânea. O filme nos permite questionar a própria natureza do currículo e como as decisões sobre conteúdos pedagógicos moldam a experiência de formação dos alunos nas salas de aula. Ela procurou pensar de que maneira o filme contribui para uma ampliação e reflexão do enriquecimento do currículo escolar.

Diego Gondim leu um poema em homenagem à líder quilombola e ialorixá Mãe Bernardete, recentemente assassinada a tiros, assim como a própria Beatriz Nascimento, na década de 90.

O título ‘Ôrí’ significa “cabeça” em iorubá, e faz referência à sacralidade dentro de cada um. Na contramão da visão iluminista, na qual a cabeça é lugar da razão, da produção intelectual, o significado atribuído no filme mostra uma outra forma de representação deste lugar, da racionalidade: a parte do corpo mais próxima ao divino não é só espaço da razão, da pureza do intelecto,, mas também da imaginação, dos afetos, do movimento. Nastassja também fez referência às heranças religiosas de matriz africana apresentadas no filme, evocando um texto de Bernardo Oliveira (também professor da Faculdade de Educação). Raquel Gerber mostra, em Ôrí, a macumba como um instrumento essencial para se entender entender a produção e organização do movimento negro no Brasil, mas também como uma religião na qual se driblaria qualquer identidade estável.

Beatriz Nascimento também atribui ao quilombo um novo significado, ao reinterpretá-lo como um lugar de sacralidade e resistência não apenas localizado, concreto, mas também existencial. Desta forma, ela retira este espaço da negatividade colonial, aproximando-o de um lugar aberto ao possível, à liberdade e atuante na produção e formação da nacionalidade. Nesse contexto, Beatriz também marca este espaço como lugar de pertencimento do corpo, produtor de histórias e ancestralidades: “a terra é meu quilombo, o espaço é meu quilombo; onde eu estou, eu estou, onde eu estou, eu sou”. Outro lugar de pertencimento evocado no filme é o oceano, espaço imenso e caro a diáspora forçada africana para o Brasil.  Para Diego, a diretora faz um jogo de imagens que compõem uma metafísica transatlântica da negritude. A interligação das imagens e a justaposição de determinadas cenas são recursos para narrar o pertencimento e o reconhecimento interno deste corpo que é documento: corpo-mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras que limitem a conquista de mim.”.

A pedagogia de Ôrí’ reside na imagem em estado de hipnose, caracterizada pela sua tendência à evasão, sua natureza efêmera, subvertendo bases epistemológicas tradicionais. ‘Ôrí’ se mostra contemporâneo e essencial para mobilizar a urgência da implementação de currículos anti-coloniais, convocando a história e a cultura afro-brasileira. O filme ressignifica, sob o olhar de uma socióloga e uma historiaora e militante, histórias e experiências do movimento negro, mostrando-o como um lugar de resistência não só corporal e político,mas ancestral, produtor de pertencimento, conhecimento. 

“Resgatar a imagem pra resgatar a identidade, pois o corpo de um é o reflexo do outro”.

A próxima sessão do cineclube ocorrerá no mês de Outubro. A programação será divulgada em breve. Siga o projeto no Instagram, no Facebook e no Twitter para atualizações e mais informações. Até breve!

Redação:
Rafaela Filgueiras – bolsista PIBIAC do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Gabriel Cid – coordenador do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CFCH
Raquel Gerber
Nastassja Pugliese
Diego Matos Gondim

Sessão de agosto/2023 com Nastassja Pugliese e Diego Matos Gondim.

“Paz é a nossa profissão”: a sátira de Kubrick em meio a destruição humana

No dia 20/6, no Auditório Manoel Maurício, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), aconteceu a exibição do filme “Dr. Fantástico” (Dr. Strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb – EUA/Reino Unido, 1964), de Stanley Kubrick, seguido da palestra “Estranhamor e os fins do mundo”, ministrada por Herli Joaquim de Menezes, mestre em Ciências da Computação/Sistemas de Informação pela UNIRIO, graduado em Física pela UFRJ. Professor da Faculdade de Educação da UFRJ e atua com pesquisa sobre redes neurais e processamento de linguagem natural.

Indicado à categoria Melhor Filme no Oscar de 1965 e baseado no livro ‘Red alert’, de Peter George, a narrativa desenvolvida por Stanley Kubrick acompanha os esforços do presidente dos EUA e do líder soviético, em meio ao período da Guerra Fria, para evitar as consequências de um ataque nuclear liderado por um general insano – que acreditava que os comunistas queriam dominar o mundo – capaz de ocasionar o fim do mundo.

Herli iniciou a conversa apresentando o contexto por trás da obra: o filme foi feito em 1962, anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e do Plano Marshall, da corrida nuclear, e sob o panorama da Guerra Fria – o que explica a sátira de Kubrick ao retratar estadunidenses preocupados com uma ameaça comunista iminente, assim como a polarização, tratada com ironia, entre “Nós” (os bons, estadunidenses) e “Eles” (os maus, comunistas). Desse modo, o filme acontece em 3 núcleos: a sala de guerra, com o presidente e seus assessores; a sala do general Ripper (nome que faz referência ao “Jack, the Ripper” – o estripador), responsável por ordenar o ataque  das bombas rumo à União Soviética; e, por fim, o avião B-52 indo em direção ao alvo para lançar a bomba. A estrutura dramática se consolida nesses ambientes assim como as ações, que muitas vezes não se completam, pulando para outro núcleo antes de finalizar, construindo uma atmosfera de tensão pela montagem. O palestrante chama a atenção para a estrutura não-clássica da narrativa, sem um retorno à harmonia ou algum clímax redentor, a não ser o final improvável. Com isso, por meio do absurdo e do distanciamento pela sátira, Kubrick permite ao espectador um reconhecimento crítico daquilo que é vivenciado na realidade.

Desse modo, ele brinca com a ideia da possibilidade de algo não sair como o esperado, apesar dos esforços dos personagens, utilizando-se da comédia para evocar questões políticas e sociais. Herli mencionou o fato de o filme ser premonitório: ele anunciava acontecimentos que, na época, ninguém considerava possíveis, explicitando os perigos de decisões tomadas por uma pessoa só, nas quais estaria traçado também o destino da humanidade.

Herli também destacou a presença dos computadores no filme, a perda de controle da máquina. Em uma cena do filme, o Dr. Fantástico afirma que um computador poderia escolher quem faria parte de uma possível nova civilização, encenando uma tensão capaz de dar a ver quem de fato é controlado. Ao fazer um salto para nossos dias, Herli comentou sobre a falta de controle no cenário das big techs, com a produção de dados no contexto da internet e dispositivos móveis. Para ele, se não pensarmos na democratização do acesso aos dados, seremos prisioneiros deles e das grandes empresas que os gerenciam.

Por meio de elementos implícitos das cenas, Kubrick não só chama atenção para o contexto da época, como também incorpora o absurdo para tratar de temas que transbordam para a realidade. Temas como alienação – por exemplo, nas ordens cumpridas sem avaliação, não importando o grau de ameaça envolvido –, o despreparo dos governantes – as pessoas que compunham a sala de guerra e o próprio general Ripper, tomando decisões insanas, tornando a comunicação impossível –, o capitalismo, a guerra sem sentido… O palestrante lembrou uma frase de Gabriel García Márquez: “há coisas que escapam da clarividência”. No entanto, para Herli, são poucas as coisas que escapam ao Kubrick – mesmo sendo um filme de 1962, ele consegue se fazer presente e potente na atualidade.

A próxima sessão do cineclube ocorrerá no mês de Agosto. A programação será divulgada em breve. Siga o projeto no Instagram, no Facebook e no Twitter para atualizações e mais informações. Até breve!

Redação:
Rafaela Filgueiras – bolsista PIBIAC do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Gabriel Cid – coordenador do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CFCH
Herli Joaquim de Menezes