
Na terça-feira, dia 27/12, encerramos a temporada 2018 do Pedagogias da Imagem, cineclube da Faculdade de Educação da UFRJ, com a exibição do filme Corra! (2017), do diretor Jordan Peele. Após a sessão, Bernardo Oliveira, doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor da Faculdade de Educação da UFRJ, realizou a palestra Economia libidinal e incêndio na Casa Grande.
Bernardo Oliveira convidou o público a pensar o longa sob o ponto de partida da libido, visto que toda a questão de Corra! decorreria de uma suposta abundância libidinal percebida no corpo do personagem principal. Mas o que seria a libido? Oliveira a apresentou como uma potência, uma energia propulsora dos instintos de vida. A partir dessa ideia, o diálogo se desenvolveu sob a observação do modo como o longa retrata a constante apropriação e expropriação da libido dos corpos negros.
Para entender melhor, Oliveira fez uma distinção entre a ideia de poder a e ideia de potência. A potência seria aquilo que um corpo pode, tudo aquilo que um corpo pode quando investe seus instintos numa produção vital. Por outro lado, o poder compreende uma estruturação social que pode inclusive se beneficiar da violência. Ele trouxe para a discussão a obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Podemos, então, dizer que o poder é visto em mãos da Casa Grande, porém a potência a ser explorada (pela Casa Grande) vem de Chris, o protagonista.
O professor também mencionou elementos das obras de Sigmund Freud e Jean François Lyotard, a fim de buscar colaborações para a conversa acerca do filme e suas questões. Freud pensa a economia libidinal como base das relações entre consciente e inconsciente. A partir de uma perspectiva médica, científica, Freud busca compreender os mecanismos dessa economia interna através da qual um indivíduo investe sua força vital em atividades, saberes e conhecimentos que estruturam a vida. No entanto, ele também aborda o que devemos perder em termos de libido, de investimento vital, para nos adequarmos às exigências de processos hegemônicos de socialização e individuação.
Décadas mais tarde, o filósofo francês Lyotard escreve o livro Economia libidinal, no qual toma a temática como um elemento capaz de oferecer uma interpretação mais completa do processo de acumulação e divisão de classes, característico do capitalismo. Haveria a substituição da noção de que o capitalismo se fundamenta na produção de mercadorias pela ideia de que o capitalismo se fundamenta muito mais na circulação libidinal, na qual a produção é condicionada pela circulação de vontades, demandas e instintos.
Em decorrência, Lyotard diz que o capital captura a força e a converge em trabalho medido pelo relógio. A força do corpo libidinal do operário, do escravo, tal qual um animal de tração, é expropriada como uma máquina – lembrando que a máquina é sempre uma propriedade de alguém. Dessa forma, mais do que explorar a força de trabalho em vista de obtenção de maiores margens de lucro, o capitalismo impõe uma administração, uma economia da contenção e da regulação das forças substanciais e superabundantes, para que se transformem em força trocável, maleável, adaptável, regulando a circulação de energia libidinal ao mínimo das perdas e ao máximo dos lucros.
Embora a fachada da “Casa Grande” exibida em Corra! seja essencialmente liberal, há em seus porões um aparato técnico-científico escondido, capaz de fazer a extração da força libidinal segundo o interesse do consumidor branco. Revelam-se, aqui, as tensões entre o capitalismo e a ciência. Na economia libidinal, a moeda não está reduzida ao dinheiro, mas às trocas e equivalências que ocorrem no “Circuito libidinal”. Esse processo se dá pela ligação de duas ferramentas: o sistema capitalista (que poda a libido a fim de torná-la operacional) e a ciência (aparato capaz de realizar a contenção e conversão do corpo, como nas práticas da eugenia). Desse modo, o longa propõe, de acordo com Bernardo, uma nova perspectiva em que a Casa Grande não é mais retratada como um elemento em torno do qual circula todo o fator produtivo do capitalismo: ela agora é retratada como uma espécie de filtro que vai reter somente aquilo que seus consumidores desejam.
Além disso, o filme de Peele apresenta personagens que encarnam de modo estratégico a perspectiva de uma conciliação racial, que fora apontada por Gilberto Freyre em sua análise do contexto brasileiro. Temos personagens que se esforçam constantemente para não parecerem racistas, que não desejam a segregação, mas são regidos justamente pela ideia de posse, agindo como proprietários da libido do corpo negro. Para marcar o contraste entre épocas, Bernardo fez uma comparação com o filme Django Livre (2012), de Quentin Tarantino, que se passa no século XIX nos EUA, sinalizando que Corra!, ao contrário daquele, não é um filme do passado, já que ele atualiza os elementos do racismo. Curiosamente, ambos os finais dos filmes trazem a representação de uma Casa Grande em chamas. Contrapondo Gilberto Freyre, Bernardo apontou que esta seria a imagem de que não há conciliação no horizonte.
Desse maneira, com o auditório lotado e um debate movimentado por um público bastante interessado, encerramos a temporada 2018 do cineclube Pedagogias da Imagem. Agradecemos pela presença de todos e todas ao longo do ano. Esperamos vocês para mais sessões e palestras no ano que vem! Continuem ligados no blog e nas nossas redes sociais para mais informações, matérias e conteúdos ligados aos temas do projeto.
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Boas festas!


Redação:
Letícia Caroline
Luana Maia
– extensionistas do projeto Pedagogias da Imagem