Solidão, vida, tecnologia e os dilemas da inteligência artificial

No dia 5 de novembro, o Cineclube Pedagogias da Imagem se reuniu para a última sessão do ano com a exibição do longa Ela (Her), de Spike Jonze, seguida da palestra Inteligência artificial: entre promessas futuras e realidades presentes, com a antropóloga Carolina Parreiras.

O filme não mede esforços em nos aproximar do protagonista, Theodore, que passa pela dolorosa separação de sua parceira, Catherine. Ele é do começo ao fim um homem inegavelmente solitário. Vemos isto nas tantas cenas em que ele anda pelas ruas por conta própria, em direção contrária às outras pessoas, dando a ideia de não reconhecimento e estranhamento em relação a quem ou o quê está ao seu redor; nos momentos em que ele interage com o casal de amigos, Paul e Amy, eles nunca estão presentes no mesmo corte, evidenciando sua solidão.

Outro fator que colabora para esta imagem é a fotografia da obra – assinada por Van Hoytema. Ele a colore em tons quentes, nos convencendo à empatia e, ao mesmo passo, quase faz com que entremos na história e assumamos o papel do protagonista, tomando exatamente as mesmas atitudes dele, tão mergulhados em uma compreensão que antes parecia impossível: quem diria que uma obra cinematográfica seria capaz de nos convencer a amar um sistema operacional?

Samantha, encantadora a princípio – só por simplesmente carregar a voz de Scarlett Johansson -, não demora muito para nos fazer levantar dentro de nós questionamentos acerca dos limites da tecnologia e do indivíduo, tão banhada de humanidade que chega a aproximar as duas coisas de maneira que, de vez em quando, por descuido, as enxergamos como uma só. Ela se prova digna de um voto de confiança quando traz indagações quase tão velhas e perpétuas quanto o tempo em que estamos neste mundo, como a questão da consciência e corporeidade: penso, logo existo. Por que isso não serviria para ela?

Esta obra especulativa com certeza foi semente de um intenso debate, que foi da exploração do caráter benéfico ou prejudicial da tecnologia, em relação com o problema da solidão. Podemos nos perguntar se as coisas são mesmo tão simples assim: será que a tecnologia é mesmo uma grande vilã, ou estamos distraídos demais para enxergar a quem realmente pertence a culpa? Pensamos sobre os contextos em que ela se origina e circula, o que nos permite entender que nem mesmo sua extinção impediria a alienação e todas as consequências que lhe sucedem.

Além disso, no debate, tivemos reflexões sobre o quão atual é o filme, apesar de ter sido produzido há pouco mais de dez anos. Quem sai de casa hoje sem seu smartphone? Ou melhor, quem não sente, de vez em quando, que este dispositivo é como a nossa casa, com todas as coisas belas aos nossos olhos, as músicas que amamos, todos os contatos que nos interessam… Fazemos dele um armazenamento de quem somos e cada vez ele nos conhece mais. É a partir desta confiança que nele depositamos que são gerados, por sua vez, anúncios capazes de seduzir, a ampliação da publicidade e da vigilância, uma manobra de aproximação que não se difere muito da de Samantha. Não é como se estivéssemos cotidianamente conferindo uma vida ao nosso aparelho? Afinal, quão diferente somos de Theodore? Não estaríamos todos experienciando um pouco a solidão e suas estranhas soluções à nossa disposição?

Mas não percamos o foco: Her é, acima de tudo, uma história de amor transumanista e humanista ao mesmo tempo: primeiro, nos provoca esta imersão e identificação, para depois provar a nossa natureza complexa e o reflexo dela em nossas relações interpessoais; as múltiplas possibilidades do romance como múltiplas possibilidades humanas, mas acima de tudo o reconhecimento de uns nos outros por meio da solitude.

Texto:
Julia Facundo – extensionista do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Carolina Moreira – extensionista do projeto Pedagogias da Imagem

Os ruídos que movem as lutas das mulheres


A quem recorrer quando o estado que deveria te amparar te ignora e te deixa entregue à própria sorte? Na sessão de setembro, o Cineclube Pedagogias da Imagem traz esta e outras discussões a partir do filme Ruído (2022), de Natalia Beristáin.

Tendo em seu centro o desespero de uma mulher, Julia, à procura de sua filha desaparecida, a narrativa parte do 9º mês sem nenhuma notícia do paradeiro da jovem de 25 anos e mostra a rede de apoio formada por outras mulheres que tiveram a vida atravessada pela mesma tragédia.

Ruído é uma obra contundente. O filme é de caráter semi-documental, se tratando de uma ficção que recolhe resquícios de tantas realidades – ou vontades – no México e os transforma numa única história de tirar o fôlego. Beristáin já havia abordado temáticas de opressão de gênero no México em filmes anteriores, como no longa-metragem O eterno feminino (Los adioses, 2017). Em Ruído, ela toca num assunto delicado do país, os desaparecimentos e o descaso das autoridades, e toma forma de denúncia, seja pelas histórias nele compartilhadas, seja pelo modo com que o fazem.

Vale ressaltar o detalhe de sua capa, que é tomada pelo rosto de Julia em close, com sua boca cruzada por um rasgo de papel, evocando o silenciamento da personagem (a atriz Julieta Egurrola é a própria mãe da diretora). Isto nos prepara para muito do que há de vir, um intenso debate acerca da inevitável impotência daqueles tocados por este problema – como prosseguir quando nada lhe é assegurado?

Para a construção do longa, Beristáin realizou uma profunda pesquisa de campo, chegando a participar das buscas e tendo acesso ao verdadeiro movimento que é, de fato, incansável. Para ela, a rede de apoio que se forma nestes grupos, a partir do reconhecimento na dor do outro, é essencial não só para o fortalecimento do coletivo, mas pela desesperada necessidade de afeto entre aquelas que compartilham semelhante vivência, como um motor da esperança. Não somente, as mulheres presentes no grupo que Julia frequenta são mulheres reais, interpretando a si mesmas e contando suas histórias.

Esta escolha reforça o cunho de denúncia do filme, tanto por dar voz a estas mulheres, quanto por nos aproximar delas e, portanto, reproduzir em nós a sensação de impotência delas, a certo nível, tornando visíveis suas dores. Deste modo, Ruído carrega a premissa de deixar o espectador insatisfeito e indignado; é como deveríamos estar. Somente sendo intimamente perturbados é que se supõe que sejamos movidos.

A sessão ocorrerá no dia 24/9, no Auditório Manuel de Albuquerque (prédio do CFCH), no Campus da Praia Vermelha-UFRJ. Não perca.


Redação:
Julia Facundo
Isabela Felippe
– Extensionistas do projeto Pedagogias da Imagem

Afetos e novos repertórios diante do colapso


No dia 27/08, o Cineclube Pedagogias da Imagem, projeto de extensão da Faculdade de Educação da UFRJ, voltou do recesso com a primeira sessão do segundo semestre de 2024, apresentando o filme Sala dos professores (Alemanha, 2023), de İlker Çatak, no Auditório Manoel Maurício/CFCH. Para debater acerca do filme, a professora, filósofa e cineasta Angela Donini foi convidada para o encontro. Ela apresentou a palestra O colapso das relações no espaço educacional e a urgência de novos repertórios.

Provocando uma claustrofobia intencional, o filme se debruça sobre o drama de um aluno em ver sua mãe – uma professora da escola que dá palco à trama -, sendo acusada de um roubo pela também docente e protagonista, Carla Nowak, levantando um intenso debate sobre o apagamento do outro no ambiente estudantil, assim como sobre o lugar das promessas da educação diante de suas limitações enquanto produto do sistema.

No debate, um dos temas de maior importância foi a dinâmica do universo encapsulado: o filme é todo ambientado na escola; o enquadramento aperta o espectador, sua música o tensiona.  O filme constrói, de maneira muito precisa,  a ideia de um lugar sem saída, trazendo reflexões sobre como solucionar os problemas da pedagogia senão pela superação dos lugares de hierarquização, onde instintos são moldados e alunos são compreendidos somente na medida em que se submetem ao ordenamento moral. As barreiras impostas pelo modo (re)produtivista da escola estão em todas as suas instâncias, desde o tratamento da direção até nos próprios estudantes.

A naturalização do distanciamento dos docentes e gestores é mostrada, pela convidada, como uma ontologia não-relacional, a partir da qual se vislumbra uma exclusão das relações e afetos que constituem as personagens.. Tudo isso constitui um cenário de intolerância, onde nada é questionado e, portanto, nada é elaborado nem trabalhado. Mesmo assim, Carla busca atravessar as barreiras que a tornam tão distante de seus discentes usando uma das poucas armas que lhe restam – o afeto –, ao mesmo tempo em que também é vítima desse sistema. Carla, com sua sensibilidade, acaba atuando como uma possível resistência destas diretivas.

Angela Donini demonstra que, por mais que a professora tenha buscado uma abordagem empática, a estrutura educacional colapsa justamente porque é uma reprodução da sociedade, na qual a gestão da escola opta por fazer acordo com a polícia e a pedagogia policialesca mostrada ao longo da obra, justamente porque é a reprodução incontrolável do capital e a escola funciona enquanto uma aparelho ideológico do Estado que reproduz uma submissão aos discentes e poder aos professores.

A partir do filme Sala dos professores, podemos pensar em projetos exteriores à escola, capazes de produzir individualidade e subjetivações por meio da inclusão de crianças e adolescentes a partir de outras formas de acolhimento, que promovam a correlação entre arte, cultura e o espaço escolar, instrumentos de aproximação e reconhecimento, produzindo novas lugares éticos de produção de saberes e cuidados.

Nossa próxima sessão acontecerá no dia 24 de setembro, às 17h. Exibiremos o filme Ruído (Ruido – Argentina/México), de Natalie Beristain, seguido da palestra O caso dos narco-feminicídios no México, com a filósofa Susana de Castro (UFRJ). Anote e siga o projeto no Instagram, no Bluesky e no Threads para mais atualizações.

Redação:
Julia Facundo
Isabela Felippe
Extensionistas do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Carolina Moreira
– Extensionista do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CFCH
Angela Donini

Sessão de agosto/2024 – ‘A sala dos professores’ e o colapso das relações no espaço educacional


Estamos de volta! Nesta última terça de agosto, 27/8, às 17h, acontecerá a sessão inaugural do semestre do cineclube Pedagogias da Imagem. Exibiremos o filme A sala dos professores (Das Lehrerzimmer – Alemanha/EUA, 2023), do diretor Ilker Çatak.

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o filme acompanha a professora Carla Nowak (Leonie Benesch), envolta em uma rede de tensões disparada por uma série de roubos, acusações e preconceitos no ambiente escolar. O filme foi premiado em seis categorias no Prêmio do Filme Alemão (Deutscher Filmpreis) no ano passado: Melhor Filme, Diretor, Roteiro, Atriz e Edição.

Teremos a alegria e a honra de receber, como convidada do mês, a filósofa e cineasta Angela Donini, professora do Departamento de Filosofia da UNIRIO, do Mestrado Profissional em Filosofia e do Programa de Ensino de Artes Cênicas, também da UNIRIO. Ela dirigiu os curtas ‘Corpos que escapam’ (2015), ‘Ancorando navios no espaço’ (2016), ‘Nomes que importam’ (2017) e ‘Que minhas únicas cicatrizes sejam de sk8’ (2023). Ela é Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, com pós-doutorados em Medicina Social (UERJ) e em Estudos Contemporâneos das Artes (UFF).

O encontro será um convite para dialogarmos sobre a urgência em construirmos novos repertórios imaginativos e práticos para as relações que se estabelecem nos espaços educacionais.

A sessão acontece no Auditório Manoel Maurício, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), campus Praia Vermelha da UFRJ. A entrada é franca e a atividade é voltada para o público geral, indicada para pessoas a partir de 12 anos.

Faça sua inscrição neste link. Aproveite para seguir o cineclube no Instagram.

Caso queira receber nossas divulgações e comunicados via WhatsApp, venha fazer parte do nosso grupo (restrito ao envio de divulgações). É só acessar este link-convite.

Até lá!

Resistências e Pedagogias Corporificadas

No dia 30/8, o Cineclube Pedagogias da Imagem retornou do recesso com a exibição do filme “Ôrí” (Brasil, 1989), de Raquel Gerber, no Auditório Manoel Maurício/CFCH. Após a exibição, tivemos a palestra Pensar as vozes do currículo: gênero, raça e território, ministrada por Nastassja Pugliese, doutora em Filosofia pela University of Georgia (EUA), professora da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenadora da Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura, sediada na UFRJ, em conjunto com Diego Matos Gondim, doutor em Filosofia pela Université Paris VIII (França) e professor do Departamento de Ciências Exatas, Biológicas e da Terra (PEB/UFF) e do PPGE/UFRJ.

O documentário, dirigido pela socióloga Raquel Gerber, usa da narrativa e voz de Beatriz Nascimento, historiadora e figura incontornável da militância do movimento negro no Brasil. O filme navega e examina de forma profunda os eventos e a história da resistência negra no país, principalmente contra as raízes coloniais, acompanhando a organização do movimento negro entre os anos 1977 e 1988, também mostrando suas origens e manifestações religiosas africanas, tendo como base a história da Beatriz Nascimento. A sessão foi realizada em parceria com a Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura.

A partir de uma iniciativa de resgate de obras de autoras brasileiras e vozes de minorias, Nastassja comentou sobre a importância de se promover uma nova composição do currículo, destacando como os aspectos de gênero, raça e território se entrelaçam com a educação contemporânea. O filme nos permite questionar a própria natureza do currículo e como as decisões sobre conteúdos pedagógicos moldam a experiência de formação dos alunos nas salas de aula. Ela procurou pensar de que maneira o filme contribui para uma ampliação e reflexão do enriquecimento do currículo escolar.

Diego Gondim leu um poema em homenagem à líder quilombola e ialorixá Mãe Bernardete, recentemente assassinada a tiros, assim como a própria Beatriz Nascimento, na década de 90.

O título ‘Ôrí’ significa “cabeça” em iorubá, e faz referência à sacralidade dentro de cada um. Na contramão da visão iluminista, na qual a cabeça é lugar da razão, da produção intelectual, o significado atribuído no filme mostra uma outra forma de representação deste lugar, da racionalidade: a parte do corpo mais próxima ao divino não é só espaço da razão, da pureza do intelecto,, mas também da imaginação, dos afetos, do movimento. Nastassja também fez referência às heranças religiosas de matriz africana apresentadas no filme, evocando um texto de Bernardo Oliveira (também professor da Faculdade de Educação). Raquel Gerber mostra, em Ôrí, a macumba como um instrumento essencial para se entender entender a produção e organização do movimento negro no Brasil, mas também como uma religião na qual se driblaria qualquer identidade estável.

Beatriz Nascimento também atribui ao quilombo um novo significado, ao reinterpretá-lo como um lugar de sacralidade e resistência não apenas localizado, concreto, mas também existencial. Desta forma, ela retira este espaço da negatividade colonial, aproximando-o de um lugar aberto ao possível, à liberdade e atuante na produção e formação da nacionalidade. Nesse contexto, Beatriz também marca este espaço como lugar de pertencimento do corpo, produtor de histórias e ancestralidades: “a terra é meu quilombo, o espaço é meu quilombo; onde eu estou, eu estou, onde eu estou, eu sou”. Outro lugar de pertencimento evocado no filme é o oceano, espaço imenso e caro a diáspora forçada africana para o Brasil.  Para Diego, a diretora faz um jogo de imagens que compõem uma metafísica transatlântica da negritude. A interligação das imagens e a justaposição de determinadas cenas são recursos para narrar o pertencimento e o reconhecimento interno deste corpo que é documento: corpo-mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras que limitem a conquista de mim.”.

A pedagogia de Ôrí’ reside na imagem em estado de hipnose, caracterizada pela sua tendência à evasão, sua natureza efêmera, subvertendo bases epistemológicas tradicionais. ‘Ôrí’ se mostra contemporâneo e essencial para mobilizar a urgência da implementação de currículos anti-coloniais, convocando a história e a cultura afro-brasileira. O filme ressignifica, sob o olhar de uma socióloga e uma historiaora e militante, histórias e experiências do movimento negro, mostrando-o como um lugar de resistência não só corporal e político,mas ancestral, produtor de pertencimento, conhecimento. 

“Resgatar a imagem pra resgatar a identidade, pois o corpo de um é o reflexo do outro”.

A próxima sessão do cineclube ocorrerá no mês de Outubro. A programação será divulgada em breve. Siga o projeto no Instagram, no Facebook e no Twitter para atualizações e mais informações. Até breve!

Redação:
Rafaela Filgueiras – bolsista PIBIAC do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Gabriel Cid – coordenador do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CFCH
Raquel Gerber
Nastassja Pugliese
Diego Matos Gondim

Sessão de agosto/2023 com Nastassja Pugliese e Diego Matos Gondim.

“Paz é a nossa profissão”: a sátira de Kubrick em meio a destruição humana

No dia 20/6, no Auditório Manoel Maurício, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), aconteceu a exibição do filme “Dr. Fantástico” (Dr. Strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb – EUA/Reino Unido, 1964), de Stanley Kubrick, seguido da palestra “Estranhamor e os fins do mundo”, ministrada por Herli Joaquim de Menezes, mestre em Ciências da Computação/Sistemas de Informação pela UNIRIO, graduado em Física pela UFRJ. Professor da Faculdade de Educação da UFRJ e atua com pesquisa sobre redes neurais e processamento de linguagem natural.

Indicado à categoria Melhor Filme no Oscar de 1965 e baseado no livro ‘Red alert’, de Peter George, a narrativa desenvolvida por Stanley Kubrick acompanha os esforços do presidente dos EUA e do líder soviético, em meio ao período da Guerra Fria, para evitar as consequências de um ataque nuclear liderado por um general insano – que acreditava que os comunistas queriam dominar o mundo – capaz de ocasionar o fim do mundo.

Herli iniciou a conversa apresentando o contexto por trás da obra: o filme foi feito em 1962, anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e do Plano Marshall, da corrida nuclear, e sob o panorama da Guerra Fria – o que explica a sátira de Kubrick ao retratar estadunidenses preocupados com uma ameaça comunista iminente, assim como a polarização, tratada com ironia, entre “Nós” (os bons, estadunidenses) e “Eles” (os maus, comunistas). Desse modo, o filme acontece em 3 núcleos: a sala de guerra, com o presidente e seus assessores; a sala do general Ripper (nome que faz referência ao “Jack, the Ripper” – o estripador), responsável por ordenar o ataque  das bombas rumo à União Soviética; e, por fim, o avião B-52 indo em direção ao alvo para lançar a bomba. A estrutura dramática se consolida nesses ambientes assim como as ações, que muitas vezes não se completam, pulando para outro núcleo antes de finalizar, construindo uma atmosfera de tensão pela montagem. O palestrante chama a atenção para a estrutura não-clássica da narrativa, sem um retorno à harmonia ou algum clímax redentor, a não ser o final improvável. Com isso, por meio do absurdo e do distanciamento pela sátira, Kubrick permite ao espectador um reconhecimento crítico daquilo que é vivenciado na realidade.

Desse modo, ele brinca com a ideia da possibilidade de algo não sair como o esperado, apesar dos esforços dos personagens, utilizando-se da comédia para evocar questões políticas e sociais. Herli mencionou o fato de o filme ser premonitório: ele anunciava acontecimentos que, na época, ninguém considerava possíveis, explicitando os perigos de decisões tomadas por uma pessoa só, nas quais estaria traçado também o destino da humanidade.

Herli também destacou a presença dos computadores no filme, a perda de controle da máquina. Em uma cena do filme, o Dr. Fantástico afirma que um computador poderia escolher quem faria parte de uma possível nova civilização, encenando uma tensão capaz de dar a ver quem de fato é controlado. Ao fazer um salto para nossos dias, Herli comentou sobre a falta de controle no cenário das big techs, com a produção de dados no contexto da internet e dispositivos móveis. Para ele, se não pensarmos na democratização do acesso aos dados, seremos prisioneiros deles e das grandes empresas que os gerenciam.

Por meio de elementos implícitos das cenas, Kubrick não só chama atenção para o contexto da época, como também incorpora o absurdo para tratar de temas que transbordam para a realidade. Temas como alienação – por exemplo, nas ordens cumpridas sem avaliação, não importando o grau de ameaça envolvido –, o despreparo dos governantes – as pessoas que compunham a sala de guerra e o próprio general Ripper, tomando decisões insanas, tornando a comunicação impossível –, o capitalismo, a guerra sem sentido… O palestrante lembrou uma frase de Gabriel García Márquez: “há coisas que escapam da clarividência”. No entanto, para Herli, são poucas as coisas que escapam ao Kubrick – mesmo sendo um filme de 1962, ele consegue se fazer presente e potente na atualidade.

A próxima sessão do cineclube ocorrerá no mês de Agosto. A programação será divulgada em breve. Siga o projeto no Instagram, no Facebook e no Twitter para atualizações e mais informações. Até breve!

Redação:
Rafaela Filgueiras – bolsista PIBIAC do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Gabriel Cid – coordenador do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CFCH
Herli Joaquim de Menezes

A criação da família entre roubos, redes e laços afetivos

Na sessão do dia 23/5, de volta ao Auditório Manoel Maurício, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), tivemos a exibição do filme “Assunto de família” (Manbiki Kazoku – Japão, 2018) do diretor japonês Hirokazu Kore-eda, seguido da palestra “A família e suas imagens afetivas”, ministrada por Henrique Antoun, professor titular da ECO – UFRJ e do PPGCOM/UFRJ. Ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 2018, o longa acompanha uma família não-tradicional moradora de uma grande metrópole que, após encontrarem uma menininha sozinha passando frio na rua, a levam para casa para cuidá-la. O filme mostra o cotidiano, as alegrias e os segredos de uma família tentando sobreviver por meio de pequenos furtos em meio a pobreza em uma área central no Japão.

Henrique Antoun, em sua palestra, explorou as imagens e articulações afetivas que o filme nos apresenta, pensando sobre a ideia de ‘família’, desdobrando elementos que apontam para formas mais espontâneas e diversas de parentesco, mais próximas da ideia de rede, para além da filiação e dos laços ditos naturais. Do ponto de vista do Estado, os personagens do filme não seriam uma família legítima, dada a inexistência de um vínculo sanguíneo. Então, como formar uma família no interior deste Estado? Ao escolherem acolher em sua casa uma menina que estava sozinha na rua – e, após perceberem que ela tinha marcas de abusos cometidos pela sua família sanguínea -, temos uma questão moral, pois, teoricamente, eles sequestram uma menina que tinha uma família, mas também a salvaram de uma realidade de abusos negligenciada pelo mesmo Estado, formando um novo tipo de arranjo familiar.

O diretor Kore-eda não julga os personagens, optando antes por descrever sua realidade e focar em outros dilemas. No longa, o Estado é falho em diversos sentidos – algo que se nota dadas as condições de vida da família, que pratica furtos de alimentos, vestimentas, ou seja, recursos básicos de sobrevivência, que poderiam ser providos, por exemplo, com a atenção do Estado. Para Antoun, faltaria honestidade, do ponto de vista estatal, enquanto sobraria sinceridade do ponto de vista familiar dos personagens. 

Sendo assim, o filme trabalha com o conceito de “chosen family” – na tradução, ‘família escolhida’ – ao mostrar que relações podem ser construídas dentro de uma realidade precária e entre desconhecidos que, mesmo envoltos em um turbilhão de situações, mesmo com alguma moralidade distorcida, criam para si  algum espaço afetivo, um ponto de partida para a criação de uma família. Kore-eda nos faz pensar, portanto, na nossa própria desconstrução moral, trabalhada com a delicadeza das relações, refletindo sobre como se constrói e se mantém o amor, além de discutir se existe, no limite, condição para se formar uma família. Deste modo, ele explora a ideia de rede associada à complexidade dos seres humanos, de suas relações, enfatizando que seria justamente no emaranhado destas relações que os vínculos se formam, se multiplicam e se perpetuam.

Redação:
Rafaela Filgueiras – bolsista PIBIAC do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Gabriel Cid – coordenador do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CFCH
Henrique Antoun

Paisagens da alteridade e a renovação do olhar

Na quarta-feira, 26 de abril, o Cineclube Pedagogias da Imagem retornou para sua primeira sessão do ano com o filme A história da eternidade (2014), de Camilo Cavalcante. Após a exibição, tivemos a palestra O outro em tempos outros: ressonâncias entre o cinema e a educação, com a convidada Andreza Berti, doutora em educação pela UFRJ e diretora adjunta de ensino do CAp-UFRJ. 

No primeiro longa-metragem do diretor pernambucano, a narrativa ficcional acompanha a vida que pulsa em meios às tensões e limitações de moradores de um pequeno vilarejo no sertão, centrada na história de três mulheres: Alfonsina, adolescente, que tem o sonho de conhecer o mar; Querência, adulta, que está passando pelo luto após perder seu filho; e Das Dores, idosa, que reencontra seu neto de São Paulo, depois de anos. A história se divide como em contos, mas interligada de alguma forma, tendo o sertão como pano de fundo e incorporando influências de fábulas nordestinas na narrativa.  

Andreza iniciou sua fala estimulando o público a pensar sobre nossa experiência da relação com o outro, com a alteridade apresentada ao longo da projeção. Quais afetos foram mobilizados na presença do outro? De acordo com a pesquisadora, é a experiência que permite o exercício do pensamento, a partir do olhar atento sobre as coisas. A partir do movimento exploratório do pensamento sobre o lugar em que se vive, é possível enxergar a maneira pela qual nos posicionamos no mundo, o lugar ao qual pertencemos, e, ao mesmo tempo, onde a alteridade e a diferença também habitam. Ao adotar esse olhar mais atento, percebemos a presença do outro não só neste próprio lugar, mas também como agente do significado construído a partir deste olhar. Ela nos convida, então, para entrar neste lugar e nos tornarmos outros, não no sentido de uma apropriação do lugar do outro, mas de uma abertura para a diferença oferecida pelo cinema. 

Dito isso, o papel que o cinema exerce na composição desse olhar se dá por meio da lente do filme, a vista pela qual olhamos. Ao assistir um filme, assistimos tudo pela perspectiva do olhar que nos é apresentado. As perguntas que surgem são geradas a partir do exercício do pensamento no encontro com as imagens. O papel do cineasta, portanto, seria o de criar a relação entre o filme e quem está vendo por meio da gênese de novos mundos, de novas relações e pensamentos, instigando-nos a formular novas perguntas a partir do que se vê. Sendo assim, o diretor Camilo Cavalcante nos presenteia com novos olhares: o filme se dá por longos e demorados planos abertos que nos convidam a ver e a sentir de outra forma as coisas e o outro, afastando-nos da familiaridade das identificações.   

Andreza fez menção a uma das cenas mais marcantes do filme, na qual Joãozinho, personagem de Irandhir Santos, performa ao som da música “Fala” – da banda Secos e Molhados -, diante de todo o vilarejo. Enquanto a câmera gira ao redor do artista, vemos todos os personagens do filme saírem de suas casas para vê-lo dançar. Deste modo, somos lançados em meio aos diferentes olhares e reações dos personagens, ao mesmo tempo em que construímos nosso olhar a partir das perspectivas do outro. Sendo assim, nas palavras da convidada, o cinema seria um elemento desestabilizador, produtor de afeto: ele promoveria um espaço de manifestação e encontro com a alteridade, ao multiplicar as experiências vividas a partir do contato com a diferença, nos fazendo pensar se ainda assim continuaríamos os mesmos. O filme de Cavalcante operaria desta forma: ele questiona nossos afetos, nossos juízos de valor, reenviando nossa presença para a posição de espectadores do outro, imersos no tempo do outro.  

E por falar em tempo, outra pergunta nos sobrevém ao longo da palestra: o que fazemos com o tempo do agora? E o tempo das relações pedagógicas, quando mediadas pelo cinema e pelas artes? Para os espectadores de um filme, imersos em uma sala de exibição, o tempo se interrompe e o presente vira o instante do que é exibido, incluindo aí o acoplamento de pensamentos, sensações e imagens, a co-construção dos afetos através da narrativa e personagens. Sendo assim, da mesma maneira que Joãozinho conseguiu apresentar o mar para Alfonsina com o exercício da imaginação, o papel do cinema no espaço da educação se associa ao desafio de criar linhas de fuga, tempos e realidades capazes de criar reflexões e novos olhares para o mundo, para os outros, para o que está ao nosso redor. 

A próxima sessão do cineclube ocorrerá neste mês de maio. A programação será divulgada em breve. Siga o projeto no Instagram, no Facebook e no Twitter para atualizações e mais informações. Até breve!

Redação:
Rafaela Filgueiras – bolsista PIBIAC do projeto Pedagogias da Imagem

Fotos:
Ananda Kropotoff – extensionista do projeto Pedagogias da Imagem

Agradecimentos:
CBPF
Andreza Berti
Camilo Cavalcante

Um necessário ato político de Ken Loach – Sessão de Abril de 2022

Na última terça-feira de abril, dia 26, o Cineclube Pedagogias da Imagem promoveu uma conversa on-line através de uma live na página do Facebook da Faculdade de Educação da UFRJ sobre o filme Você não estava aqui (2020), do diretor britânico Ken Loach, abordando questões atuais sobre a precariedade das condições de trabalho e a maneira como a vida dos trabalhadores é afetada pelo trabalho no mundo capitalista. A conversa contou com a presença do convidado José Ricardo Ramalho, professor titular do Departamento de Sociologia do IFCS/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGSA-UFRJ), além de autor de livros sobre sociologia do trabalho. 

Dividida em duas partes, a conversa com o professor focou, primeiramente, na representação de elementos das mudanças do mundo do trabalho nos tempos atuais, tratadas cuidadosamente no filme pelo diretor Ken Loach, e, mais adiante, foca na narrativa, na história da cidade na qual o filme se passa e nos personagens do filme, explicitando como as ações e dificuldades enfrentadas pelos personagens vão intensificando-se ao longo do filme, conduzindo a história para um final impactante, o que é comum nos filmes do diretor. Ramalho explora as relações de trabalho presentes na história do filme, os aspectos da precarização e “plataformização” do trabalho e os subempregos vendidos como “empreendedorismo”, bem como a maneira como o trabalho afeta todos os outros aspectos da vida de um trabalhador como o personagem principal, Ricky Turner, e de sua família.

O professor José Ricardo Ramalho apresenta detalhes da vida do diretor do filme, Ken Loach, a fim de uma melhor compreensão sobre o contexto socioeconômico em que o diretor está inserido e sua origem familiar, nos apresentando um background que faz com que toda sua filmografia seja crítica em relação ao capitalismo e às relações de trabalho dentro desse sistema, trazendo uma sensibilidade narrativa e estética extremamente íntima e fiel de alguém com origem na classe operária inglesa, o que pode ser percebido, inclusive, na escolha de atores e atrizes também oriundas da classe trabalhadora.

O filme de Ken Loach se faz muito atual e relacionável com o cenário do mundo do trabalho, inclusive o cenário brasileiro, no qual crescem cada vez mais os trabalhos informais e as plataformas online de serviços como compras e entregas, assegurando pouco ou nenhum direito trabalhista ou de fiscalização, possibilitando a exploração de pessoas e o aumento de condições de trabalho precárias e nocivas à saúde e integridade de indivíduos.

O professor José Ricardo chama a nossa atenção para a sensação de pouco otimismo ou esperança que o final do filme nos deixa. Ramalho nos apresenta o pensamento do diretor Ken Loach sobre o que pode um filme e o poder que próprio cineasta pode ter no pensamento das pessoas, e afirma, por fim, que o caráter aberto do filme pode ser um convite a se pensar outras possibilidades e caminhos, através da inquietação que a história nos causa.

A sessão do mês de maio do Cineclube ocorrerá na terça-feira, dia 31, abordando o filme “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), de Glauber Rocha.

Nos acompanhe também pelas redes sociais!

Facebook: Cineclube Pedagogias da Imagem

Twitter: @cinepedagogias

Instagram: @cine.pedagogias

Redação: Fernanda Vitoriano (Bolsista e extensionista do projeto Pedagogias da Imagem)

O lugar comum, a poesia e as imagens: Paterson no Cineclube em novembro

O que torna a vida interessante? Na sessão de novembro, o Cineclube Pedagogias da Imagem exibirá Paterson (2016), de Jim Jarmusch, um filme que traz essa e outras questões em sua narrativa.

A produção, que é a décima oitava do diretor, está inserida na tradição cinematográfica construída por cineastas do movimento underground estadunidense.  Responsável pela remodelagem do cinema independente americano – processo ocorrido no fim dos anos 80 e início dos anos 90 -, Jarmusch cria, através de uma estética que visa reduzir os excessos e a agressividade do cinema mainstream, uma forma particular de narrar suas tramas, enfocando situações geralmente descartadas pelo circuito comercial, como é o caso de Stranger than Paradise (1984), primeiro de seus filmes com grande expressão, e de Coffee and Cigarettes (2003), composto exclusivamente pelas narrativas do comum, temática trazida quase na totalidade de seus filmes.

Não podendo ser diferente, é desse lugar ordinário que surge o desenvolvimento do longa escolhido para a exibição de novembro. O filme narra o período de uma semana da rotina de Paterson: motorista de ônibus, o jovem contido – de quem o público observa a história – vive todos os dias da mesma maneira sem se incomodar. É, no entanto, a partir dessa trama absolutamente comum – ou talvez por causa dela – que Jarmusch faz o filme acontecer.

Evoca-se, o tempo todo, sua intrínseca relação com a poesia: além do personagem principal ser, essencialmente, poeta e ter o nome do local em que mora, ambos têm o mesmo nome do poema mais longo de William Carlos Williams, que o fez inspirado pela cidade onde morava. A despeito dessas não coincidências, somadas ao fato do filme ser estruturado de maneira a lembrar a forma de um poema, pode-se inferir maneiras pelas quais o cineasta nos conduz em suas reflexões. 

Assim como faz Paterson – isso é, tirar poesia da banalidade cotidiana -, Jarmusch tenta sugerir ao espectador, através de uma espécie de pedagogia do olhar, uma maneira de achar beleza e satisfação no comum da vida, já que é esse o estado mais constante dela. Nesse sentido, é a repetição que se encarrega de dar todo o tom: se na poesia dita o ritmo, no filme – mostrando-se tão tangível quanto qualquer um dos personagens -, possibilita a construção desse novo olhar.

Sobre essa relação, falará o professor Paulo Domenech Oneto na palestra e no debate que, tradicionalmente, acontecem após a sessão. Doutor em Filosofia pela Université de Nice, em Literatura Comparada pela University of Georgia e professor na Escola de Comunicação da UFRJ, Oneto apresentará a palestra A poesia e a ideia de repetição em Jim Jarmusch, prometendo tecer reflexões e desdobrar leituras sobre estes pontos presentes no filme.

A sessão, indicada para o público a partir de 16 anos, acontecerá no dia 12/11, às 17h, no Auditório Manuel Maurício de Albuquerque (prédio do CFCH), no Campus da Praia Vermelha-UFRJ.

Não perca!

Redação:

Laura de Souza

-Extensionista do projeto Pedagogias da Imagem