Nas primeiras cenas da série The Good Place, a protagonista Eleanor Shelstrop está em uma sala de espera ao ser recebida por um homem grisalho. Ele diz que ela está morta e está no lugar ao qual apenas uma pequena parcela da sociedade vai após a morte, o lugar bom, o céu, o paraíso. Só que ele é um pouco diferente do que se imagina: uma vizinhança criada por um arquiteto para uma comunidade de pessoas que acumularam a maior quantidade de pontos de bondade durante a vida. Este bairro foi especialmente desenhado para atender às necessidades de cada um dos moradores. Eleanor prontamente percebe que não deveria estar lá ao recordar sua vida. Uma confusão acontecera e ela fora trocada por outra Eleanor Shelstrop, uma ativista que dedicou sua vida a ajudar os outros.
Então, Eleanor conhece sua alma gêmea, escolhida através de um sistema infalível do Lugar Bom, o professor de filosofia moral Chidi Anagonye. Não demora muito até Eleanor confessar para ele que não pertence a este lugar e pede sua ajuda para que a ajude a ser uma boa pessoa através dos estudos de filosofia moral. Ele dá aulas a Eleanor, nas quais discutem textos de filósofos como Kant, Hobbes, Platão e Aristóteles (esse último, que tem um dos escritos mais tradicionais sobre narrativa, o “Poética”) e revisam dilemas morais clássicos. Na casa ao lado, um outro casal de almas gêmeas é composto por uma socialite milionária, compulsiva por atenção, e um monge budista que fez um voto de silêncio quando era criança, Tahani Aljamil e Jianyu. Eleanor eventualmente descobre que ele também é uma farsa e permanecia em silêncio para não entregar sua verdadeira identidade, cujo verdadeiro nome é Jason Mendoza, um traficante da Flórida.
Ao exercer sua personalidade “corrompida” no Lugar Bom, ele começa a “falhar”, expondo sintomaticamente que algo está fora do lugar através de “bugs”. Ao final da temporada, depois de incessantes conflitos e tentativas de consertar os problemas do lugar e esconder a identidade dos moradores errôneos, Eleanor percebe que aquele não poderia ser o Lugar Bom. Ela decifra que aquele, na verdade, é o Lugar Ruim, desenhado para torturar psicologicamente seus moradores sem que eles percebessem.
Ao analisarmos as situações impostas aos quatro personagens principais, é possível perceber que a cada um deles se configura um caminho direcionado a levá-los justamente a ser o oposto do que, de fato, são. Principalmente Eleanor, uma pessoa egocêntrica forçada a virar uma pessoa boa pelo destino. Em narrativas clássicas cinematográficas, também conhecidas como narrativas de primeiro campo e por vezes associadas à noção de “jornada do herói”, é costumeiro um protagonista possuir alguma falha de caráter que precisa ser corrigida. Todos os acontecimentos se voltam para ele através de situações às quais ele não possui o menor controle, configurando uma narrativa linear rumo à correção. A história gira ao redor dessa falha de caráter, para que ela seja corrigida, tornando-se, assim, o inferno pessoal do protagonista. Este, por sua vez, passa a expressar a vontade de permanecer nos primeiros atos da história – o chamado “mundo comum”, sua zona de conforto estabelecida antes do chamado à aventura, ao conflito que o leva à transformação. Gustave Flaubert, teórico do romance, disse em uma de suas correspondências presentes no livro Cartas Exemplares, que “o escritor é como um Deus em seu universo: presente em toda parte, porém visível em parte alguma”.
Ao final da história, a platéia cria uma empatia pelo personagem e sua jornada moral, ao se identificar com suas falhas e se inspirar em sua correção, com uma sensação de dever cumprido e vontade de ser uma pessoa melhor também. O inferno, manipulado para parecer um paraíso em The Good Place, nos mostra que esses personagens vivem literalmente seus infernos pessoais para se tornarem pessoas melhores. Da mesma forma, podemos entender todos os roteiros de primeiro campo dessa forma, espelhados nesta metáfora que serve de aula para a própria escrita roteirística. Mas, o que acontece quando o personagem percebe as engrenagens do sistema ao qual está submetido? Sua vontade de melhorar se torna corrompida pela consciência das circunstâncias? O conhecimento do processo é a quebra da quarta parede em relação ao roteiro, feita pelo próprio personagem ao perceber que seu destino, considerado divino, é, na verdade, uma manipulação diabólica. Esse esquema parece evidenciar o moralismo de uma sociedade ao questionar sua compulsão por impor padrões e correções de comportamento, e isso acontece por meio de algumas estratégias: o plot twist, em que Deus se torna uma figura diabólica, e a comicidade por trás de mecanismos do Lugar Bom, como o sistema de pontuação da bondade, por vezes, ridículo. Desta forma, os personagens se rebelam contra as narrativas impostas, insurgindo-se contra as armadilhas do próprio roteiro e deixando uma pergunta que tensiona a estrutura clássica: porque somos atraídos por narrativas que encerram as complexidades humanas? E, para subverter Sartre – filósofo mencionado na série -, podemos afirmar que o inferno são, neste caso, os roteiros.
Redação: Mariane Germano