Corpos revolucionários: de Whitman a Marcelo Caetano

“Eu canto o corpo elétrico.” (…) “Se algo é sagrado, o corpo humano é sagrado /E a glória e a doçura do homem o emblema da humanidade imaculada /E no homem ou na mulher um corpo são, forte, musculoso, é mais belo do que a mais bela das faces. /Já viram o insensato que perverteu o próprio corpo? ou a insensata que perverteu o próprio corpo dela? /Pois eles não se escondem, não podem esconder-se a si mesmos.”

É com essa desenvoltura e iconoclastia que o grande escritor norte-americano revolucionário Walt Whitman descreve seu apreço pela expressão corporal enquanto coisa única. Conhecido como o criador dos ‘versos livres’, ao escrever poemas durante todo século XIX que questionavam as padronizações poéticas da época, Whitman desenvolveu seu renome nas tentativas de afirmar,através da literatura, a diversidade dos seres humanos e as interconexões sexuais e cognitivas inquestionáveis entre todas as pessoas. Seus poemas enalteciam, com tamanha simplicidade, o corpo, a mente, e o existir; no próprio poema explicitado, “Eu canto o corpo elétrico”, ele incita: “E se o corpo não for a alma, o que será a alma?” Seu corpo de trabalho ficou conhecido principalmente por abordar questões controversas, normalmente consideradas ‘tabus’ incontestáveis na sociedade em que viveu. Denominado por Fernando Pessoa como o maior poeta revolucionário norte-americano, ele produziu durante o período literário do humanismo, que situou-se entre o transcendentalismo e o realismo, o que garantiu diferentes influências à sua obra. O filme “Versos de um crime” (Kill your darlings) explora as rupturas e a sensualidade da literatura de Whitman, que funciona como plano de fundo ao crescimento literário revolucionário e queer dos personagens principais da trama. Estudantes de Literatura na Columbia University, Allen Ginsberg e Lucien Carr exploram a destruição de ícones em uma das mais tradicionais universidades norte-americanas como forma de descoberta de suas próprias identidades. A liberdade linguística, consequência e causa de todo o processo, era celebrada pelos personagens em brindes a Whitman em bares de Nova York.

Outro filme que se utiliza da obra e da figura de Walt Whitman, nesse caso, de forma mais significativa, é a produção brasileira de 2017, Corpo elétrico, de Marcelo Caetano. O título incorpora uma referência a um dos poemas do escritor, já acima explicitado. A temática sexual, sensual, carnal e iconoclasta mantém-se enquanto uma construção de ponto de vista: entender os seres humanos em suas condições físicas e sentimentais, em constante descobrimento, mesmo que em seus níveis mais simples. O filme retrata o corpo em suas repartições eletrizantes; o contato dos quadris com o sol, a nuca, as costas, o torso, a boca, o maxilar – um corpo com seus universos inteiros. A sensualidade e a simplicidade da construção da narrativa de um trabalhador jovem, gay, da classe média de São Paulo, em uma confecção de roupas. Elias, jovem paraibano que não mantém muito contato com os pais, tenta, na narrativa, conciliar suas autodescobertas com o seu trabalho e sua vida social. A construção da história se baseia em um princípio de alteridade, também como afirmou o diretor, em entrevista ao “Canal das Bee”, plataforma de produção de vídeos no Youtube que pauta a questão LGBT de forma questionadora e inquietante. Ao descrever o filme, Marcelo fala de uma “experiência de alteridade, da possibilidade da gente encontrar pessoas que sejam diferentes (…), falar de encontros que são improváveis mas não são impossíveis, é apostar nesse fiapo de probabilidade e colocar lado a lado a drag queen e um casal de evangélicos.” A constância de provocação, que relaciona-se com o autor escolhido para presentear o nome do filme, cria novas formas de comunicação através do audiovisual; formas essas que desejam ser naturalizadas. A fuga da previsibilidade dos filmes LGBTs também é percebida nesse caráter. Os “corpos elétricos” são os corpos apresentados (e não representados) pelo filme, são os corpos apagados que com simplicidade colocam-se em posição de protagonismo – sem medo, sem estereótipos, como a água cai do chuveiro.

Lembremos também de outro filme recente, “A Seita” (2015), ficção científica do diretor André Antônio, que conta a história de um jovem entediado com as vida nas colônias espaciais de 2040. Ele decide retornar a Recife, onde tem contato com a Seita que o ajuda a recriar e problematizar as noções de corpo enquanto uno, assim como a sua própria identidade individual. Mesmo que carregado de outras bagagens, a temática LGBT apresentada busca também a naturalidade sexual, carnal, afetiva.

É possível perceber na construção dessas novas narrativas da linguagem audiovisual uma tentativa de apresentar um ambiente de diversidade, uma atmosfera queer. A sensação do “proibido”, que permeou as primeiras produções LGBT do cinema na história, é abandonada, o invisível a ele conotado passa a ser substituído por um protagonismo da subversão, do disruptivo. É  importante delimitar essa mudança de cenário. A transformação, a alteração da posição da câmera que passa a centralizar aqueles que viviam à margem, banhados em representações superficiais e/ou estereotipadas. Como o diretor do filme Corpo Elétrico irá afirmar, “o corpo elétrico é se libertar (…), como se reencontrar com o próprio corpo.” São desse perfil os novos representantes do cinema que pauta-se na diversidade, com a certeza de que a própria afirmação de sua existência queer já é uma tomada de posição revolucionária.

O filme Corpo elétrico será exibido na próxima sessão do Pedagogias da Imagem, cineclube da Faculdade de Educação da UFRJ, no dia 04/09/2018, às 17 horas, no Campus da Praia Vermelha, no Auditório Manoel Maurício. Após a sessão, o professor Thiago Ranniery, da Faculdade de Educação da UFRJ, atuante e pesquisador nas áreas que refletem os temas de gênero, sexualidade, afeto e diferença, realizará uma palestra por ele denominada O intenso tecer, ou esboço de uma pedagogia queer. Todos estão convidados para a abertura do mês de diversidade no cineclube!

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Redação:
Julia Stallone
– extensionista do projeto Pedagogias da Imagem