A história da ciência que conhecemos nos prende a uma perspectiva de uma única história – um termo concebido e problematizado pela escritora Chimamanda Ngozi Adichie em seu TED Talk “O perigo de uma única história“. Segundo esse conceito, a sociedade é levada a acreditar que a totalidade das descobertas científicas foram feitas por homens brancos de classe média, demarcando seu protagonismo. Todavia, essa perspectiva não espelha corretamente a realidade desse meio, que exclui tantas outras existências que batalham socialmente para serem legitimadas intelectualmente. Esse é o caso, principalmente, das mulheres negras na ciência, que tiveram suas vozes apagadas e a autoria de suas teorias usurpadas. É sobre esse panorama que o filme a ser discutido no cineclube Pedagogias da Imagem, “Estrelas além do tempo”, vai retratar.
Tendo isso em vista, é importante entendermos toda a estrutura que, em primeiro lugar, dificulta a entrada dessas pessoas no meio científico, assim como sua permanência no mesmo. Em uma perspectiva histórica, a fala das mulheres sempre foi mais relacionada ao imaginário “do lar” do que a uma lógica de pensamento matemático e de outras áreas do “conhecimento”. Acreditava-se que, biologicamente, elas não teriam a capacidade de raciocínio para adentrar esse universo intelectual, tradicionalmente de exclusividade masculina. Junto a isso, existe um forte imaginário racista na sociedade que relega os corpos negros a uma posição de inferioridade, principalmente no que concerne à lógica científica ocidental, excluindo-os do campo. Esse prisma começa a ser modificado nos Estados Unidos nos anos 60 com o fortalecimento do movimento dos Direitos Civis, que alavancou as pautas negra e feminista, em um esforço para legitimar suas vozes. Apesar de conquistarem alguns direitos e espaços, seus avanços no meio científico continuaram a ser barrados por empecilhos perpetuados pela sociedade. Como Mary Jackson, uma das cientistas retratadas no filme, afirma: “Sempre que temos uma chance de avançar, eles mudam a linha de chegada.” Um exemplo marcante, que retrata essa perspectiva na história estadunidense, foi o dilema presidencial que ocorreu durante o governo Kennedy, em 1963, retratado no documentário “Crise“, cujo título original é “Crisis: behind a presidential commitment” (1963), de Robert Drew. Dois estudantes negros, Vivian Malone e James Hood, tiveram sua entrada na Universidade do Alabama questionada pelo Governador do Estado, George Wallace, que literalmente tentou, com sua presença física, impedir o ingresso na instituição.
Mesmo quando conseguem ultrapassar, com seu talento e esforço, muitas dessas barreiras impostas socialmente, suas contribuições científicas são “esquecidas” do registro histórico. Um grande exemplo é Katherine Johnson, física e matemática, que foi responsável por calcular a trajetória de várias missões da NASA, além de ter sido essencial para o lançamento do primeiro norte-americano no espaço; ela é protagonista do filme “Estrelas Além do Tempo”, que demonstra todo esse processo. Além dela, não podemos deixar de citar Mileva Marić-Einstein, esposa do famoso físico e uma das primeiras mulheres a ingressarem na Universidade Politécnica de Zurique como estudante de Física e Matemática. Sua genialidade foi, inclusive, imprescindível para a elaboração da Teoria da Relatividade, em conjunto com Albert Einstein. No entanto, mesmo sendo cruciais para o avanço da ciência no mundo moderno, seus nomes e, consequentemente, o reconhecimento por suas contribuições foi completamente apagado e esquecido, relegando o crédito de sua intelectualidade a um homem, seja seu “colega” de trabalho, seja seu marido.
Atualmente, livros e filmes têm buscado trazer à tona essas vozes femininas esquecidas pelo tempo, visando contar a verdadeira história por trás de suas descobertas científicas. Desde livros infantis que contam um pouco da vida e realizações de grandes nomes de mulheres que mudaram o mundo, até livros como “Senhora Einstein” e “Estrelas além do tempo”, que foi adaptado para o cinema e concorreu ao Oscar de melhor filme. Dessa forma, é possível perceber uma tentativa de reformulação da história oficial, iluminando seus erros e exclusões sociais. Apesar disso, podemos perceber ainda certo caráter hollywoodiano, onde imperam vozes masculinas brancas, no que diz respeito à forma que essas histórias serão recontadas. Tal tendência fica evidente com o protagonismo “heroico” de certos personagens brancos que são inseridos nessas narrativas como pessoas bondosas que teriam “concedido” esses espaços. Como se eles estivessem, com seus “favores”, salvando-as de uma realidade de exclusão que eles mesmos foram responsáveis por criar. Isso é perfeitamente traduzido pela inserção de um personagem historicamente inexistente no filme “Estrelas além do tempo”, Al Harrison, seu chefe que a teria “ajudado” a se inserir nesse espaço. Tal prisma não diminui a importância do filme, o qual representa um avanço na pluralidade de histórias acerca do campo científico.
“Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. […] Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso.”, como afirma Chimamanda em seu TED Talk.
Em meio à campanha de ‘21 dias de ativismo contra o racismo’, o longa Estrelas além do tempo (2016), de Theodore Melfi, será exibido na sessão de abertura da temporada 2019 do Pedagogias da Imagem, cineclube da Faculdade de Educação da UFRJ. A sessão acontece no dia 26 de março, às 17 horas, no Campus da Praia Vermelha, no Auditório Manoel Maurício. Após a sessão, Janete Ribeiro, ativista negra, mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense e Professora da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, realizará a palestra Uma outra história a ser contada. Todos estão convidados para as discussões sobre mulheres negras na ciência no cineclube!
Redação:
Julia Stallone
Camila Carneiro
– extensionistas do projeto Pedagogias da Imagem