“Enquanto um ser querido continua desaparecido, é como estar em um limbo no inferno. Não há descanso um só dia”
No dia 24/09, o Cineclube Pedagogias da Imagem, projeto de extensão da Faculdade de Educação da UFRJ, apresentou a segunda sessão do semestre, exibindo o filme Ruído (Argentina/México, 2022), de Natalia Beristáin, no Auditório Manoel Maurício/CFCH. Para debater acerca do filme, a professora, filósofa e autora Susana de Castro foi convidada para o encontro, apresentando a palestra A crise dos narco-feminicídios no México.
O filme se caracteriza como uma ficção mesclada com a realidade, portanto, possuindo caráter semidocumental. Não há trilha sonora, há somente os sons (ruídos) das cenas, reforçando a imersão do espectador. Baseado em diversas histórias reais, o longa apresenta o descaso das autoridades com os casos de desaparecimento, mostrando como o dinheiro do narcotráfico corrompe as instituições, apresentando também as redes de apoio e solidariedade das famílias de desaparecidos.
Estas redes funcionam como uma alternativa criada pela própria população, atuando como um sistema de busca dos desaparecidos, pois a cada dia que passa, a possibilidade de encontrá-los com vida diminui, demarcando que o trabalho da polícia se resume a recolher os corpos, e não impedir as mortes.
Susana de Castro aponta a cumplicidade entre a polícia, o judiciário e o Estado nessa nova ordem embasada pelo narcotráfico. Um exemplo real da inoperância das instituições foi o caso dos “43 de Ayotzinapa”. Datado de uma década atrás, 43 estudantes mexicanos da Escola de Professores Rurais Isidro Burgos desapareceram. O último presidente, Andrés Manuel López Obrador, instaurou uma comissão da verdade e indicou uma resposta para o caso, afirmando se tratar de um crime de Estado. Além disso, o ex-procurador-geral do México, foi preso por ligação com o caso (que incluía desaparecimento forçado, tortura e obstrução da justiça). Atualmente, ele se encontra em regime de prisão domiciliar.
No desaparecimento mostrado no filme, Gertrudis, filha de Julia, passa por uma constante “revitimização”, isto é, pela recorrência de se apontar uma falha na vítima como justificativa para o acontecido: quando as autoridades evocam, por exemplo, o uso recreativo de drogas que Gertrudis fazia com amigos. De acordo com relatos reais, esse é um modus operandi, principalmente quando se trata de mulheres desaparecidas.
Julia faz três coisas para tentar encontrar a filha: contatar inicialmente a polícia, o que a levou a procurar a filha esperando que ela estivesse morta; ir a um abrigo de mulheres que foram vítimas de algum tipo de sequestro, além de realizar buscas de restos mortais com outras mulheres que também possuem familiares desaparecidos. A iniciativa das buscas, que deveria ser tocada pela polícia forense, é da própria população mexicana, demonstrando mais uma vez o descaso governamental. A ausência de um corpo é pavorosa, pois ainda permite a esperança de que a pessoa desaparecida seja encontrada viva (neste ponto, é possível traçar um paralelo com o Brasil na época da ditadura militar).
Susana sinaliza que, na década de 90, os crimes da Ciudad Juárez mostraram um modelo de feminicídio ligado ao narcotráfico (portanto, um narco-feminicídio), que se alastrou pelo país. Segundo o Observatório Cidadão Nacional do Feminicídio (OCNF), mais de mil mulheres foram assassinadas desde 2008 somente nessa região. A partir da entrada das montadoras no México, por conta do custo da mão-de-obra, mulheres jovens começaram a trabalhar e, consequentemente, obtiveram mais autonomia, o que é levantado por Susana como uma motivação para as torturas. A mulher representa um ponto de união entre agressores, sendo a violência uma forma de assegurar o seu lugar de pertencimento no grupo, com caráter pactual (os integrantes não relatam o ocorrido), caracterizando uma afirmação coletiva. Apesar de haver vínculos de proximidade entre os locais em que os corpos apareciam e fazendas relacionadas ao narcotráfico, bodes expiatórios são usados para mascarar esta “coincidência”.
O México possui a ‘Lei Geral de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência’, datada do ano de 2007. No entanto, o país não fez avanços quanto a esse problema, enfatizando a necessidade de uma mudança no país. Pela quantidade de mulheres desaparecidas e crimes não solucionados, pressupõe-se uma coesão moral dos cidadãos diante destes fatos. Para que uma mudança seja efetiva, o combate deve ser travado no campo cultural, moral, social, político e econômico. Os narco-feminicídios são alicerçados no sistema capitalista e algumas formas de resistência dos sujeitos são mostradas no final do filme, quando há repressão às mulheres que protestam. Se a luta democrática se vê diante destes desafios, somente uma mudança mais estrutural de sistema conseguiria garantir segurança às mulheres.
Por Julia Facundo e Isabela Felippe
– Extensionistas do projeto Pedagogias da Imagem